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Título 1

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 O espetáculo “A Jagunça”, escrito, dirigido e interpretado por Ildeu Ferreira é uma daquelas peças que arrebatam pela força do texto. É apenas um ator em cena e uma instrumentista que executa a trilha ao vivo. Cenário simples, mas assentado na necessidade dramatúrgica. Luz precisa, figurino adequado. Tudo austero, não sobra nada. O nome e a ambientação sugerem o universo literário de João Guimarães Rosa, com quem o autor certamente dialoga. Mas a referência é outra, não estamos no Noroeste de Minas, ali é um outro sertão, que vai se revelando aos poucos: Cabeça de Boi, Sumidouro, Senhora dos Remédios, Suaçuí, Antônio Pereira. A trama se passa nas imediações de Passabém, São Sebastião do Rio Preto, Santa Maria de Itabira, Itambé do Mato Dentro e foi inspirada em caso verídico.

Embora Zinha evoque Diadorim, a personagem emblemática do romance “Grande Sertão: Veredas”, ela é constituída de outra matéria, tem outros propósitos, outra história, outro sotaque. É caborge, mas não é donzela. Ou como a própria diz: “não nasci jagunça”, foi por precisão. Lembra também Riobaldo em diversos aspectos, como a religiosidade dúbia, oscilando entre Deus e o diabo; o tom auto-reflexivo das elucubrações existenciais; mas, principalmente, pelo recurso do diálogo com um suposto interlocutor que torna-se a própria plateia. A música e o silêncio guiam a ação, que se inicia com um aboio enquanto a atriz e instrumentista Antonia Claret dispara paisagens sonoras e toca instrumentos percussivos com sutileza e precisão. A personagem então entoa um vissungo, canto ritual da tradição banto característica da região do Serro e Diamantina. É a senha para entrar na imbricada teia de referências do sertão mineiro, muito mais amplo que os limites geográficos do semiárido.

Mas sobretudo o espetáculo tem uma dimensão trágica e uma estrutura épica, reforçada pela densidade poética do texto que sustenta toda a ação baseada em memórias e sortilégios, rogos e pragas, orações e lamentos. Conheci Ildeu atuando no Grupo Multimédia, meados dos anos 90. Depois o reencontrei como gestor da Insólita Cia em Ouro Branco. Soube que ele chegou a dirigir um espaço cultural em Tiradentes. Trombamos também nos fóruns de discussão política. Mas é no palco que ele se realiza com plenitude. Com seu teatro descarnado ele toca de forma pungente em questões tão caras nesse momento em que vivemos como o ódio, a vingança, a maternidade, a opressão do patriarcado. Mas talvez o que fique mesmo marcado no córtex seja o caminho tortuoso da personagem no fio da lâmina de um facão, entre o bem e o mal, na tarefa impossível de corrigir o mundo e dar fim às injustiças em lugares onde o braço do Estado não chega e a violência impõe a lei a ferro e fogo.

Saímos do teatro emocionados. 

“A Jagunça” foi montado ‘fora da lei’, sem apoio dos mecanismos de incentivo e encerra a temporada hoje na FUNARTE - BH. Deveria ter contado com recursos públicos para que pudesse ser visto por mais gente, em outros lugares.

 

Makely Ka é poeta, cantor, violinista, produtor cultural e compositor

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